A filha do vaqueiro

16/02/2019 13:22

 

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A Filha do Vaqueiro - Legh Richmond (1772-1827)

 

A tarefa de investigar o modo por que as operações da graça divina se manifestam no carácter e na vida dos verdadeiros filhos de Deus é especialmente agradável, e tanto mais ainda quando observamos entre as classes mais inferiores dos homens a luz da misericórdia divina derramar-se no coração e mostrar a imagem de Cristo nele impressa pelo Espírito Santo. Entre estas pessoas a sinceridade e simplicidade do caráter cristão se manifestam mais livres dos obstáculos, que muitas vezes servem de tropeço às pessoas de posição. Muitos são os obstáculos que a opulência, o luxo, a posição elevada e a nobreza opõem àqueles que querem viver piedosamente. Há casos, e destes conheço alguns, em que a graça divina subjuga de tal modo o orgulho, o amor próprio e o amor do luxo e dos prazeres, que os nobres e os grandes, em quem isto tem lugar, mostram em suas vidas a verdadeira pobreza de espírito - essa humildade não fingida, que deve caracterizar todo o cristão.

Mas em geral, se quisermos ver a religião em toda a pureza, devemos procurá-la entre os pobres deste mundo, que muitas vezes são os mais ricos na fé. Quantas vezes não é a choupana do pobre o palácio de Deus! Muitos de nós podemos dizer com verdade que ali temos aprendido as melhores lições de fé e de esperança e presenciado as demonstrações mais admiráveis da sabedoria, bondade e poder de Deus.

A pessoa que vou apresentar nesta narrativa aos leitores é a filha de um pobre vaqueiro, com a qual travei conhecimento por meio de uma carta que me dirigiu, e onde vou transcrever uma parte. Ei-la:

 

Reverendo senhor.- Perdoa-me a liberdade que tomo em escrever-lhe sem que o conheça (senão por tê-lo ouvido pregar na igreja de __ ). Creio porém que és um pregador fiel em admoestar os pecadores para que fujam da ira que se há de manifestar contra todos os que vivem em pecado e morrem impenitentes. Muito me alegrei com as provas de amor que mostraste àquele pobre soldado que lhe procurou.

Sem dúvida foi o amor que habita em ti pela fé e que o constrange a buscar as almas desgarradas, junto com o desejo que tens de empregar todas as suas forças em promover a glória de Deus, o que o levou a tratar este soldado com tanta caridade.

Senhor: - Seja fervoroso em pedir a Deus a convicção e a conversão dos pecadores, pois que ele prometeu ouvir a oração da fé, que lhe for feita em nome de seu Filho. "Tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu no-lo farei." (João 14:13). Pela fé em Cristo, nós nos regozijamos na esperança de um tempo futuro, em que todos os homens hão de temer e conhecer o Senhor Jesus Cristo! Então se fará a sua vontade na terra do mesmo modo por que é feita no céu. Os homens se sustentarão do maná de seu amor e se deleitarão no Senhor todo o dia.

Principiei a escrever esta carta domingo passado por não ter podido assistir ao culto divino. Soube que minha irmã estava gravemente enferma e tive de vir substituí-la em suas obrigações e tratá-la em casa da senhora __ , onde ela estava de criada; mas já faleceu.

Antes de morrer, minha irmã manifestou o desejo de receber a ceia do Senhor e comemorar por este modo a preciosa morte de seu Salvador. Disse-lhe como pude o que é receber Cristo no coração, e aumentando-se-lhe a fraqueza do corpo não falou mais sobre este assunto.

Parecia resignada antes de morrer e tenho a firme convicção de que deixou este mundo de morte e de pecado para ir assistir com Deus para sempre.

Minha irmã exprimiu o desejo de que você assistisse a seu enterro. O pastor de nossa congregação, para onde seu cadáver tem de ser conduzido, não pode estar presente. Ela faleceu terça-feira de manhã e há de ser sepultada sexta-feira próximo às 3 horas da tarde ou àquela [hora] que for mais conveniente a vós.

Rogo pois a ti o favor de responder pelo portador, afim de que eu saiba se lhe será possível atender o meu pedido.- Sou de vós uma indigna criada,

Isabel M. E.

 

A leitura desta carta tão simples e cheia de piedade causou-me grande impressão. Senti grande satisfação em achar uma correspondente tão pia e humilde, tanto mais que caracteres destes eram então mui raros naquela vizinhança.

Logo que acabei a leitura da carta perguntei pelo seu portador, e ouvindo que esperava fora do portão saí a falar-lhe. Era este um ancião cuja presença exigia respeito. Estava com a cabeça encostada ao portão e derramava uma torrente de lágrimas. Ao aproximar-me dele cumprimentou-me humildemente e disse:

-Senhor, trouxe a vós uma carta da parte de minha filha, mas temo que nos julgue muito atrevidos por lhe incomodar tanto.

-- Pelo contrário, lhe repliquei, sinto-me feliz em poder servir-vos. Convidei-o então para que entrasse, e depois de o ter feito assentar perguntei-lhe:

- Que ocupação é a vossa?

- Tenho passado a maior parte de meus dias em uma cabana a seis milhas daqui. Tenho arrendadas umas poucas geiras de terra e possuo umas poucas vacas, que, com o meu trabalho diário, me dão os meios de sustentar e criar minha família.

- Que família tendes?

- Minha mulher, que é já velha e sem forças, um filho e uma filha, pois que a outra já deixou este mundo.

Creio que foi para um mundo melhor, lhe disse eu.

Também eu o creio, replicou ele. Ela, pobrezinha, não era tão inclinada às coisas boas como sua irmã, mas creio que o modo de que sua irmã usou em falar-lhe antes de morrer, conseguiu o fim de salvar sua alma. Que benção divina não é o ter uma filha como a minha! Nunca pensei seriamente a respeito da salvação da minha alma senão desde que me admoestou para que fugisse da ira vindoura.

- Que idade tendes?

Tenho setenta anos completos e minha mulher é ainda mais velha. Nós vamos envelhecendo e quase se nos tem passado o tempo de trabalhar, mas minha filha deixou [o emprego em] uma boa casa, onde estava de criada, de propósito para tomar conta da nossa queijaria. Ela é uma filha muito amável e caritativa para conosco.

- Ela sempre foi assim? continuei a perguntar.

- Não senhor; quando era mais moça só se importava com as coisas do mundo, com os divertimentos, com o vestuário e as companhias. Nós todos éramos muito ignorantes; só cuidávamos do presente e pensávamos que cumpríamos com todo o preciso não fazendo mal a ninguém. Ambas as nossas filhas eram desobedientes, e como nós, desconheciam a vontade de Deus e a Palavra de sua divina graça. A mais velha, porém, empregou-se há anos como criada de uma casa, teve a felicidade de ouvir pregar o Evangelho, e desde então tornou-se outra pessoa. Então começou a ler a Bíblia e tornou-se séria e zelosa no cumprimento de seus deveres. Depois disto, a primeira vez que nos foi visitar levou-nos algum dinheiro, que tinha poupado do seu salário, dizendo que como estávamos envelhecendo estava persuadida de que necessitávamos de seu auxílio, e que por tanto não tinha querido gastar aquele dinheiro em vestidos custosos como antes fazia, os quais só serviam para alimentar o orgulho e a vaidade, mas que queria mostrar sua gratidão a seus pais por amor de Jesus Cristo, que tinha usado de grande misericórdia para com ela.

Nós nos admiramos de ouvi-la falar deste modo e tivemos muito prazer em gozar de sua companhia, pois que seu gênio e comportamento eram tão humildes e amáveis, parecia tão desejosa de fazer-nos bem tanto no espiritual como no corporal, e nos parecia tão mudada, que apesar de até ali termos sido tão descuidados e ignorantes, principiamos a crer que devia haver na religião alguma coisa verdadeira; pois que de outro modo não poderia ter reformado em tão pouco tempo os sentimentos e o caráter de uma pessoa.

Naquele tempo, sua irmã mais moça, pobrezinha, costumava rir-se e escarnecer dela, dizendo que seus novos costumes lhe tinham virado a cabeça. Ao que ela respondia : «Não, minha irmã, não foi a cabeça que se me virou, mas sim o meu coração que se voltou do amor do pecado para o amor de Deus; e espero que algum dia hás de conhecer como eu, o perigo e a vaidade de teu estado presente.» A isto sua irmã replicava : « Não quero ouvir teus sermões; sei que não sou pior do que as outras, e isto me basta.» - «Pois bem, dizia-lhe Isabel, se me não queres ouvir, ao menos não me podes impedir que eu ore por ti, e isto faço de todo o meu coração.»

E agora, senhor, creio que suas súplicas foram ouvidas, porque, quando sua irmã caiu doente, Isabel foi tratar dela e valeu-se desta ocasião para lhe falar de sua alma. Isto fez tal impressão no ânimo da pobre moça, que esta principiou a convencer-se de seus pecados passados e a mostrar-se tão agradecida pelos cuidados e afetos de sua irmã, que ela começou a nutrir grandes esperanças a respeito da salvação dela. Quando eu e minha mulher a fomos ver na doença, nos disse que a lembrança de sua vida passada lhe causava grande pesar e vergonha, mas que esperava que o Salvador de sua irmã seria também o seu, porque conhecia a sua depravação e desamparo e só desejava repousar em Jesus Cristo como o único meio de salvar-se.

Ela, porém, já morreu, e eu creio que as súplicas de sua irmã para sua conversão a Deus foram ouvidas. Permita Deus que também sejam [ouvidas] aquelas que lhe dirige pela salvação de seus pobres pais.

Esta conversação foi um agradável comentário sobre a carta que tinha recebido, e me causou tanto desejo de cumprir com o pedido que continha, como de conhecer a pessoa que a tinha escrito. Prometi ao bom velho que assistiria ao enterro no dia e hora mencionada na carta, e depois de mais um instante de conversa a respeito de sua aflição, despediu-se de mim, e retirou-se.

O rosto enrugado deste venerável ancião, seus cabelos brancos, seus olhos banhados de lágrimas, seus passos vacilantes tornavam sua pessoa respeitável e interessante; e ao passo que se retirava vagarosamente, apoiado a seu bordão, que parecia tê-lo acompanhado por muitos anos, ocorreram-me algumas reflexões, de que ainda me recordo com vivas emoções de prazer.

No dia aprazado fui [...] para assistir ao enterro. Ali minha atenção foi atraída pelo semblante humilde, piedoso e agradável da moça que me tinha escrito a carta. Deixava ver muita gravidade sem afetação, e grande serenidade e devoção.

Enquanto se celebrava o ofício fúnebre ocorreu uma circunstância, que julgo dever mencionar. Um homem da aldeia, que até aquele tempo tinha sido não só de um caráter descuidado, mas também desleixado, entrou [...] por mera curiosidade; porém durante o ofício foi tal a impressão que algumas dessas palavras produziram em seu coração, que ficou convencido de seus pecados e do perigo em que se achava. Esta impressão foi de tal natureza que nunca mais se apagou, e foi gradualmente se aperfeiçoando até efetuar a sua conversão, da qual tive muitas e repetidas provas. Falava com frequência do ofício fúnebre, como do meio de que Deus se tinha servido, em sua misericórdia, para atraí-lo ao conhecimento da verdade.

Quão manifesta não foi a reunião de circunstâncias que por uma providência especial, no mesmo dia trouxeram à mesma sepultura o gravo e o descuidado! Quanto não perdem aqueles que se descuidam de investigar os meios de que Deus se serve em sua providência para a redenção e santificação dos pecadores! [...]

Concluído o ofício fúnebre, tive uma curta conversação com os pais e a irmã da defunta. [...] Prometi tornar a visitá-los em breve, e voltei então para minha casa refletindo nas ocorrências do funeral a que tinha assistido.

Bendisse então ao Deus dos pobres, e orei para que os pobres se tornassem ricos de fé, e os ricos fossem feitos pobres de espírito.

[...] A lembrança do trato que tivemos com os que, segundo cremos, estão agora gozando a dita não interrompida de outro mundo melhor, enche o coração de uma agradável tristeza, e anima a alma com a antecipação do dia, um [dia] que a glória do Senhor será revelada na congregação de todos os seus filhos. É de pouca importância se foram ricos ou pobres neste mundo; pois agora tanto os que eram pobres como os que eram ricos são reis e sacerdotes para Deus. Espero que aquilo que ainda tenho a dizer a respeito desta virtuosa jovem seja de utilidade para todos os meus leitores.

Cerca de uma semana depois dos acontecimentos que ficam narrados, fui visitar a família do velho vaqueiro. A maior parte do caminho que levava a sua habitação era aformoseado por árvores, que abrigavam os caminhantes dos cálidos raios do sol, por arbustos e flores, que cresciam de ambos os lados do caminho, e por outros muitos objetos agradáveis à vista. Varias rochas grotescas, por entre as quais corriam alguns córregos, variavam a cena, e produziam um efeito novo, pitoresco e agradável.

De espaço a espaço divisava-se ao longe, através das aberturas deixadas pelas árvores, panoramas cheios de beleza. Quando o caminho se elevava por cima dos outeiros, apresentava-se a vista do mar e dos navios, cujas alvas velas chamavam a atenção.

Porém, pela maior parte do caminho, a sombra do arvoredo e as formosuras de uma natureza mais limitada me dispunham à contemplação.

Quanto não perdem os que são estranhos às meditações sérias sobre os milagres e as paisagens da natureza! Com que glória brilha em suas obras o Deus da criação! Não há árvore, nem folha, nem flor; não há pássaro, nem inseto que não proclame - Deus me criou.

Ao aproximar-me da aldeia em que vivia o velho vaqueiro, divisei-o em um pequeno prado onde pastavam algumas vacas. Cheguei até mui perto dele sem que me conhecesse, pois que sua vista era curta.

- Deus o guarde, disse o ancião ao ver-me; muito me alegro de que o senhor tivesse vindo; nós o temos estado esperando toda esta semana.

Abriu-se então a porta da casa, e a filha saiu: dela seguida de sua velha e enferma mãe. Ao ver-me, lembraram-se do enterro e da sepultura, onde nos tínhamos encontrado pela primeira vez. Esta boa gente me recebeu com lágrimas de afeto misturada com sorrisos de satisfação. Apeei-me do cavalo, e me conduziram para a casa por um pequeno e asseado jardim, parte do qual era assombreado por duas frondosas nogueiras. Era manifesto o asseio e limpeza, tanto no interior como no exterior da casa. Esta casa, disse eu comigo mesmo, é uma residência própria para a piedade, para a paz e contentamento. Permita Deus em sua misericórdia que esta visita me sirva de lição.

- Não merecemos, senhor, disse a filha, que entre debaixo de nosso teto. É muita bondade sua em vir visitar-nos.

- Nosso Senhor, respondi eu, veio de muito mais longe para visitar a nós, miseráveis pecadores. Ele se apartou do seio de seu Pai, desfez-se de sua glória, e veio a este mundo para fazer uma visita de misericórdia e amor; e não devemos nós, se professamos segui-lo, suportar as fraquezas dos outros, e andar por toda a parte fazendo bem como ele fez?

Não tardou a entrar o bom vaqueiro, e em breve a conversação versou sobre a perda que tinha sofrido; e se tornou muito manifesta a disposição piedosa e sensível da filha, tanto no que dizia a seu pai, como no que me dizia. Surpreendeu-me sua inteligência e o modo agradável de suas expressões de devoção a Deus e de amor a Jesus Cristo, pelas grandes misericórdias que lhe tinha concedido. Parecia desejar muito aproveitar-se da oportunidade que lhe oferecia a minha visita, tanto para seu próprio proveito, como para o de seus pais; mas nada havia de orgulho da sua parte. Reunia a firmeza e severidade do cristão, a modéstia feminina e a obediência filial. Era impossível estar com ela, e deixar de notar quão admiravelmente os princípios evangélicos que professava adornavam seu gênio e conversação.

Em breve descobri quão feliz e ansiosa esta amável moça tinha sido em seus esforços para atrair seus pais ao conhecimento e à experiência da verdade. Este é um amável rasgo do carácter de uma jovem cristã. Quando Deus, por meio da espontânea disposição de sua misericórdia, se serve chamar para sua graça uma moça enquanto seus pais jazem ainda submergidos na ignorância e no pecado, quão grande não é a obrigação que esta favorecida filha contrai a respeito da conversão dos autores de seus dias! E quão extraordinários não devem ser seus esforços para consegui-la! É uma felicidade quando os vínculos da natureza são santificados pelos da graça.

É evidente que estes anciões consideravam sua filha e falavam dela como de sua instrutora e admoestadora nas coisas divinas, enquanto que ao mesmo tempo recebiam dela as maiores provas de sua submissão e obediência filial, demonstradas por seus contínuos esforços para servi-los e ajudá-los em todos os afazeres de sua pequena casa.

A religião desta moça era de um caráter muito espiritual. Suas idéias a respeito do plano divino de salvar ao pecador eram claras e segundo as Escrituras. Falava muito dos gozos e pesares que tinha experimentado no decurso da sua vida religiosa, porém estava muito certa de que a verdadeira religião não consiste em transições ocasionais de um a outro estado da mente e do espírito. Ela cria que para gozarmos de comunhão com Deus é preciso que vivamos em Cristo pela fé, e que procuremos viver conforme seus preceitos. Sabia que o amor de Deus para com o pecador, e a senda do dever prescrita ao pecador, são ambos de uma natureza imutável. Crendo e dependendo de Deus, e caminhando com afeto pela senda do dever, buscou e encontrou a paz de Deus, que sobrepuja todo o entendimento.

Poucos eram os livros que tinha lido além de sua Bíblia; mas, embora poucos, eram excelentes e quando ela falava deles mostrava que lhes conhecia o valor. A Bíblia, a viagem do Cristão, e alguns outros livros e folhetos religiosos, compunham toda a sua biblioteca.

Notei que seu semblante era pálido, e soube depois que isto era um prognóstico de tísica, e me ocorreu então que não havia de viver muitos anos. Efetivamente agradou a Deus chamá-la cerca de [um] ano e meio depois.

O tempo se passou rapidamente com esta interessante família; e depois de ter comido alguma coisa, e gozado de algumas horas de conversação, pareceu-me necessário retirar-me.

Agradeço muito ao senhor, me disse a filha, por sua bondade cristã para comigo e meus pais. Creio que Deus abençoou sua visita a nós todos; quanto a mim, estou certa que me foi uma benção. Meus queridos pais a recordarão com gratidão, e me alegro na oportunidade, que jamais tínhamos antes gozado, de ver um ministro do Evangelho debaixo deste teto. O meu Salvador foi abundantemente misericordioso para comigo em mandar-vos como um facho [de luz], a mostrar-me o caminho da vida e da paz: e o desejo de meu coração é viver para sua glória. Porém desejo ver meus caros pais gozando também do consolo e do poder da religião.

- Parece-me evidente, repliquei eu, que a promessa "E haverá um dia conhecido do Senhor, que não será nem dia, nem noite; e na tarde desse dia aparecerá a luz," (Zacarias 14:7) já se tem cumprido a respeito deles.

- Eu o creio, respondeu ela, e louvado seja Deus por esta bendita esperança.

- Louvai-o também por terdes sido o instrumento para trazê-los à luz.

- Assim faço, senhor; mas quando penso em minha insuficiência e falta de mérito, me alegro com temor.

- Senhor, disse o velho vaqueiro, estou certo de que Deus lhe recompensará pela bondade que nos tem mostrado. Peço-lhe que rogue a Deus para que tenha misericórdia de nós, apesar de tão velhos e grandes pecadores. A pobre Isabel esforça-se muito por amor de nós, tanto em corpo, como em alma; trabalha muito todo o dia para nos poupar incômodos, e temo que não tenha forças para fazer tudo o que faz; também conversa conosco, lê-nos a Bíblia, e ora para que sejamos salvos da ira vindoura. Verdadeiramente ela é para nós uma filha boa.

- Que a paz seja convosco e com tudo o que vos pertence, disse eu.

- Amém, responderam todos a uma; nós lhe agradecemos muito.

Deste modo nos separamos. As meditações que fiz ao regressar para casa foram doces e proveitosas para mim. Desde então continuei a visitar com frequência a casa desta boa gente, e achei sempre motivos para dar graças a Deus pelo trato que gozei com eles.

Depois de algum tempo reparei que a saúde de Isabel começava a decair com rapidez. A desoladora tísica, instrumento do Senhor para trasladar anualmente deste mundo a tantos milhares de indivíduos, tinha-se apoderado de sua constituição. Os olhos encovados, a penosa tosse, e, muitas vezes, o lisonjeiro colorido das faces indicavam que ela não estava longe da morte.

Os frequentes ataques e lento progresso das enfermidades consumptivas, oferecem aos ministros do Evangelho e aos amigos cristãos a ocasião de demonstrar uma atenção útil e afetuosa. Quantas oportunidades desta natureza, em que a Providência parece dar tempo para uma instrução sã e piedosa, se perdem diariamente! De quantos se pode dizer que não conhecem o caminho da paz, porque nenhum amigo se tem aproximado para advertir-lhes que «fujam da ira vindoura!»

Felizmente, porém, a filha do vaqueiro conhecia as coisas que diziam respeito à sua paz eterna, antes que a enfermidade se tivesse enraizado em sua constituição. Eu poderia dizer que quando a visitava recebia mais bens do que o que ela recebia pela instrução que eu lhe dava. Seu espírito conservava o grande tesouro das verdades divinas, e sua conversação era verdadeiramente instrutiva. A lembrança disto ainda produz em meu coração um profundo sentimento de gratidão.

Recebi um dia uma carta nos seguintes termos:

«Querido senhor - alegrar-me-ia muito, se não levasse a mal, que [...] se dignasse vir ver a uma indigna pecadora. A minha vida está quase extinta, porém espero em Jesus Cristo para a salvação de minha alma. Sua conversação sempre tem sido abençoada para mim, e agora, mais do que nunca, sinto a necessidade dela. Meu pai e minha mãe beijam suas mãos.

« Sua indigna serva,

      « Isabel. »

Naquela mesma tarde fui ver Isabel. Quando cheguei à casa do vaqueiro, sua mulher me abriu a porta e com o rosto banhado em lágrimas meneou a cabeça sem dizer nada. Seu coração estava cheio. Esforçou-se por falar-me, mas não pôde. Tomei-a pela mão e disse-lhe:

- Minha boa amiga, tudo está bom quando a vontade do soberano e misericordioso Deus é satisfeita.

- Oh! senhor, minha Izabel, minha querida filha está tão mal; que farei sem ela, sempre pensei que eu morreria primeiro, mas...

- Mas o Senhor quis que antes que você morra veja a feliz chegada de sua filha à glória. Não há misericórdia nisto?

- Oh! querido senhor, sou muito velha, e muito fraca, e esta minha querida filha é o bordão e o apoio de minha velhice.

Entrando mais para o interior vi Isabel sentada junto ao lume em uma cadeira de braços e apoiada sobre almofadas com todos os indícios da proximidade da morte. Pareceu-me que não poderia viver mais de 3 ou 4 semanas. Seu pálido semblante se animou com doce sorriso de complacência e amizade ao dizer-me:

- O senhor é muito bom em vir ver-me tão depressa. Vê que me estou finando diariamente e que portanto será mui curto o tempo que terei de permanecer sobre a terra. Minha carne e meu coração desfalecem, mas Deus é a força de meu débil coração e tenho confiança de que será a minha porção para sempre.

A conversação que se seguiu era interrompida de espaço a espaço pela tosse e falta de alento. O tom de sua voz, embora fraco, era claro; seu semblante era solene e recolhido, e seus olhos, ainda que mais embaciados do que antes, não careciam de animação quando ela falava. Eu tinha admirado com frequência o belo estilo que empregava na enunciação de suas idéias, e também o modo bíblico com que comunicava seus pensamentos. Esta interessante jovem era muito inteligente e sua graça natural animava suas expressões. Na ocasião a que me refiro não era menos favorecida de seus talentos naturais; pois que parecia estar no exercício de toda a força da graça e da natureza.

Depois de me ter sentado entre a filha e a mãe dirigi-me a Isabel nos termos seguintes:

- Espero que gozeis da presença divina, confiando naquele que tem estado convosco e vos tem guardado em todos os lugares em que vos tendes achado, e vos conduzirá à terra de puras delícias aonde reinam os santos.

- Creio que sim, senhor. De alguns dias à esta parte minha mente tem estado às vezes ofuscada, mas creio que isto tem sido em grande parte o efeito de minha debilidade e sofrimento físico, e em parte causado pela inveja de meu inimigo espiritual, que quer persuadir-me que Jesus Cristo me não tem amor e que me tenho enganado a mim mesmo.

- Vós vos rendeis às suas sugestões? Podeis duvidar de tão numerosas provas da misericórdia de Jesus, no passado e no presente?

- Não, senhor; na maior parte do tempo da minha agitação tenho podido conservar a clara evidência de seu amor. Não quero ajuntar a meus pecados a descrença em sua manifesta bondade para com minha alma. Confessá-lo-ei para seu louvor e glória.

- Qual é vossa idéia a respeito do estado em que vos acháveis antes que ele vos chamasse por sua graça?

- Eu era, senhor, um criatura descuidada e orgulhosa, gostava de belos vestidos; amava o mundo e as coisas que há no mundo. Servia em casa de uma família mundana e nunca tive a dita de estar em casa de uma família que tivesse respeito ao serviço de Deus, ou em que o senhor ou a senhora da casa tivesse o menor cuidado acerca das almas dos seus criados. Fui à igreja no domingo, mas somente com o desejo de ver e de ser vista e não com o desejo de orar ou de ouvir a Palavra de Deus. Eu me julgava suficientemente boa para salvar-me e me desgostavam as pessoas religiosas, de quem muitas vezes me ria. Achava-me então nas trevas, nada sabia do caminho da salvação; nunca orava, nem conhecia o perigo do meu estado. Esforçava-me muito por ser tida em conta de boa criada e em extremo me lisonjeavam os aplausos. Em meu comportamento, eu era regularmente moral e decente, estimulada a isso somente por motivos carnais e mundanos, porém era estranha a Deus e a Cristo, era descuidada acerca da minha alma, e se tivesse morrido naquele estado o inferno teria com justiça sido meu destino.

- Que tempo faz desde que ouviu o sermão, que com a benção de Deus, credes ter efetuado vossa conversão?

- Haverá cerca de cinco anos.

- Como sucedeu isso?

- Ouvi dizer que um tal Sr. F...... a quem os ventos contrários tinham impedido de embarcar em um navio que saía para outro lugar bem distante, no qual devia ir como capelão, tinha de pregar naquele dia na igreja de ...... Muitos me aconselharam que deixasse de ir ao sermão, temendo que eu ficasse com a cabeça perturbada; porque, segundo diziam, o ministro que devia pregar tinha noções estranhas. Porém a curiosidade e o desejo de mostrar um vestido novo que eu tinha, me induziram a pedir licença para ir. Em verdade não tinha outro objeto senão a vaidade e a curiosidade. Contudo assim agradou a Deus ordená-lo para sua glória.

Fui pois à igreja, e ali vi um grande concurso de gente. Penso frequentemente no que se passou em meu espírito no decurso do culto divino. No princípio, descuidada do culto de Deus, olhava para todas as partes, ansiosa de chamar a atenção sobre mim. Meu vestido, como o de muitas moças alegres e vaidosas, era muito melhor do que o que geralmente usavam aquelas que ocupavam posição idêntica a minha, e era muito diferente daquele que convém à uma pecadora, que tem uma idéia exata sobre a propriedade e decência. Era muito visível o estado de minha alma pelo primor de meus vestidos.

O ministro afinal leu o texto: «Vesti-vos com humildade». Fez uma comparação entre os vestidos do corpo e os da alma. Não se tinha adiantado muito no sermão, quando principiei a repreender-me por causa de minha paixão pelos vestidos finos; porém quando o ministro chegou a descrever a vestimenta da salvação, de que todo o cristão deve estar vestido, senti a nudez de minha alma, inteiramente destituída daquela humildade de que falava o texto, e muito longe de possuir ainda a mais ligeira parte do vestido do verdadeiro cristão. Olhei para meu belo vestido e arrependi-me de meu orgulho. Olhei para o pregador, e me pareceu um mensageiro enviado do céu para me abrir os olhos. Olhei para a congregação e desejava saber se alguma outra pessoa se sentia como eu. Olhei para meu coração e me pareceu cheio de iniquidades. As palavras do pregador me faziam tremer, e contudo meu coração se sentia atraído pelo que ele dizia.

Explicou a riqueza da graça divina, revelada nos meios que Deus foi servido empregar para salvar o pecador; fiquei assombrada de tudo o que tinha feito durante minha vida. Descreveu o manso, submisso e humilde exemplo de Jesus Cristo. Eu era orgulhosa, altiva, vã e amiga da pompa. Representou a Cristo como sabedoria e eu senti-me na ignorância. Ele o apresentou como a retidão, eu estava convencida do meu delito. Patenteou que era a santificação e eu vi minha corrupção. Ele proclamou a Cristo como a redenção e eu senti minha servidão ao pecado e que era escrava de satanás. Concluiu seu discurso dirigindo-se aos pecadores, exortando-os a fugir da ira vindoura, a deixar o amor aos ornamentos estéreis, a confiar só em Cristo para a salvação e a vestir-se da verdadeira humildade.

Desde aquele dia não tenho perdido de vista o valor da minha alma e o risco que correm os pecadores. Embora minha mente estivesse em estado de confusão, dei graças a Deus pelo sermão que tinha ouvido.

O pregador tinha tratado da principal paixão do meu coração e pela graça de Deus foi o meio de despertar minha alma. Que felicidade seria, senhor, se muitas moças pobres em lugar de adornar o corpo com vestidos finos, buscassem aquilo que é incorruptível, isto é, o ornamento de um espírito manso e quieto, que à vista de Deus é de grande valor!

A maior parte da congregação não estava acostumada a ouvir sermões tão fiéis e bíblicos, e se desgostou e queixou-se muito da severidade do pregador, em quanto que uns poucos, como eu, segundo cheguei a saber depois, foram mui tocados e desejavam muito tornar a ouvi-lo; mas o pregador não tornou a pregar ali.

Desde aquela época, por meio de oração particular e pela leitura e meditação, cheguei a conhecer o lastimoso estado em que me achava como pecadora, e a infinita misericórdia de Deus que, por meio de Jesus Cristo fazia participante de sua glória a uma infiel pecadora. E, ah! senhor, que Salvador tenho encontrado! É mais do que eu podia pedir ou desejar. Em sua plenitude hei encontrado tudo de que necessitava em minha pobreza; em seu seio o lugar de descanso apartado de todo o pecado e pesar, e em sua palavra forças contra a dúvida e falta de fé.

- E não ficou convencida, lhe perguntei, de que sua salvação devia ser um ato de pura graça de Deus, inteiramente independente de suas boas obras e merecimentos anteriores?

- Querido senhor, quais foram minhas obras, antes de ouvir aquele sermão, senão más, interesseiras e ímpias? Os pensamentos do meu coração, desde minha juventude sempre foram maus. E meus merecimentos, o que foram senão os de uma alma abandonada e perversa, que nem respeita a lei nem o evangelho? Sim, senhor, vi naquele instante que se de algum modo eu podia ser salva, somente podia sê-lo pela livre misericórdia de Deus e que todo o mérito e honra desse ato, desde o principio até o fim seria seu.

- Que mudança experimentou a senhora em si em relação ao mundo ?

- Pareceu-me tudo vaidade e vexação de espírito.  Foi-me necessário para paz do meu espírito separar-me dele. Fiz uso da oração e gozei de muitas preciosas horas de delícias na secreta comunhão com Deus. Lamentava com frequência meus pecados, e tinha muitas vezes grandes conflitos por falta de fé, pelo temor, pela tentação de voltar aos meus antigos costumes e por uma variedade de dificuldades, que me embargavam o passo. Mas aquele que me amava com amor eterno me persuadiu de sua bondade, me mostrou o caminho da paz, me fortaleceu gradualmente minha resolução de seguir novo modo de vida, e me ensinou que sem ele nada podia e que com sua força podia fazer tudo.

- Não encontrou muitas dificuldades em sua situação, por causa da mudança de princípios e de suas práticas?

- Sim, senhor, em cada dia de minha vida. Alguns riam-se de mim, outros me repreendiam; meus inimigos me desprezavam e meus amigos se compadeciam de mim. Uns me chamavam hipócrita, outros santa, e me ridicularizavam com muitos outros epítetos para fazer-me desprezível aos olhos de todo o mundo. Porém eu tinha como honra as injúrias que me faziam. Perdoava a meus perseguidores e orava por eles, pois me recordava que não havia muito eu tinha feito o mesmo com outros. Me lembrei de que Jesus Cristo sofreu contradição dos pecadores, e como o discípulo não é maior do que seu mestre, me alegrava em poder de algum modo imitar os seus sofrimentos.

- E então não sentia interesse por sua família?

- Oh! sim, senhor, nunca ela estava fora de meus pensamentos. Orava continuamente por ela e nutria grande desejo de lhe fazer bem. Interessava-me particularmente por minha mãe e meu pai, que se iam tornando velhos, [...] e estavam nas trevas [...]

- Ai de mim! interrompeu a mãe suspirando, estávamos na ignorância e na trevas, no pecado e na miséria até que esta querida Izabel, esta querida filha trouxe à casa de seus pobres pais a Jesus Cristo Nosso Senhor.

- Não minha mãe, diga antes que Jesus Cristo lhe trouxe sua pobre filha para que lhe dissesse o que tinha feito pela alma dela; e espero fará o mesmo pelas vossas almas.

Nisto entrou o vaqueiro com dois vasos de leite. Antes de entrar, o vaqueiro tinha-se detido um pouco ao pé da porta e ouvido as ultimas palavras de sua filha.

- Abençoada sejas, disse-lhe ao entrar, e voltando-se para mim prosseguiu: Meu senhor, esta querida filha abandonou tudo para se reunir a seus velhos pais a fim de consolá-los, servi-los e ensiná-los a conhecer a Deus. Mas ah! sua moléstia me parece muito adiantada, e temo que a não possuiremos por muito tempo.

- Meu pai, replicou Isabel, confiemos em Deus; os nossos dias estão nas mãos dele. Estou pronta a obedecer-lhe quando me chamar. E tu, meu pai, não está disposto a entregar-me àquele Deus de quem me recebeu?

- Que me perguntas, querida filha?

- Estou certa que [...] deseja minha felicidade...

- Se a desejo! Sim, minha filha; faça-se a vontade de Deus.

Achei oportuna a ocasião para perguntar a Isabel de onde provinha a sua principal consolação a respeito do seu falecimento que se aproximava.

- Minha confiança, disse ela, descansa inteiramente em Cristo. Quando me considero a mim mesma, meus muitos pecados, fraquezas e imperfeições colocam as santas virtudes de Jesus Cristo fora do alcance do meu coração: porém quando o considero como meu Salvador, o acho todo amor e caridade. Penso em sua vinda ao mundo em carne, e me sinto consolada dos sofrimentos do meu corpo, pois que ele também os teve. Medito em suas tentações, e o julgo capaz de socorrer-me quando sou tentada. Penso também em sua cruz, e isto me anima a suportar a minha. Considero em sua morte, e desejo com ânsia morrer para o pecado, de sorte que este não tenha mais domínio sobre mim. Algumas vezes penso em sua ressurreição, e confio que me tem dado parte nela, porque sinto que meus afetos se inclinam para as coisas lá de cima.

Sinto muita consolação em pensar naquele que está sentado à destra de seu Pai, advogando minha causa, e até fazendo aceitáveis as fracas orações, que dirijo a Deus, tanto por mim como por meus caros pais. Esta é a ideia que, pela graça de Deus, eu tenho formado da bondade do Salvador, e que me tem feito desejar e esforçar-me, como o permitem minhas débeis forças, em servi-lo, entregar-me a ele, e procurar fazer o meu dever neste estado de vida, a que foi servido chamar-me. Mil vezes eu teria caído e desanimado se ele me não tivesse sustido. Sinto que nada sou sem ele. Ele é tudo em todos. Quando posso descansar nele os meus cuidados, acho forças para fazer a sua vontade. Queira Ele dar-me forças para confiar em seu amor até os últimos momentos de minha vida! Não temo a morte, porque creio que ele destruiu-lhe já o aguilhão. E não é isto uma felicidade? Diga-me, senhor; acha que estou enganada? A mim parece-me que isto não é ilusão. Em nada mais senão na grande plenitude de Jesus Cristo, me atrevo a por minhas esperanças. Quando pergunto alguma coisa a meu coração, não ouso fiar-me nele porque é traidor e me tem enganado muitas vezes; quando, porém, me dirijo a Jesus Cristo, este me responde com promessas que me fortalecem e não me deixam duvidar a respeito de seu poder e desejo de salvar-me. [...]

E quando ela falava, olhei ao redor de mim, e parecendo-me sentir a presença do Senhor, exclamei: Nada temas, alma cristã, esta é a porta do céu.

Espessas nuvens tinham há pouco interceptado a luz do sol e tornado escura a tarde; mas neste momento o sol, já próximo a pôr-se, saiu de entre as caligens que o ocultavam, e seus luminosos raios se projetaram repentinamente no quarto em que nos achávamos.

Um grande mapa de Jerusalém, e uma estampa representando o velho e novo homem, constituíam os principais ornamentos da parte da casa em que estávamos: reinava em toda ela o maior asseio e limpeza.

Estes raios do sol eram um emblema do luzente e sereno ocaso da vida terrestre desta jovem crente. Por entre o abatimento de suas pálidas feições se divisava uma tranquila resignação, uma confiança triunfante, uma humildade verdadeira, e uma terna ânsia que claramente mostravam os sentimentos de seu coração.

Depois de conversar por mais um pouco de tempo, fiz uma curta oração e despedi-me. Já anoitecia quando me encaminhei para a casa. O mugido dos bois, o balidos das ovelhas, o zunido confuso dos insetos da noite, o distante ruído do mar, as últimas notas dos pássaros do dia e as primeiras canções do rouxinol; toda esta harmonia contribuía mais para aumentar as impressões que eu tinha recebido em minha visita. As cenas da natureza produzem frequentemente belíssimas ilustrações da verdade divina. [...]

Algum tempo depois, recebi um recado informando-me que minha jovem amiga estava a expirar. O portador era um soldado, cujo semblante revelava seriedade, inteligência e piedade.

- Os pais de Isabel, disse o soldado, mandam dizer ao senhor, que ela está a expirar, e deseja muito vê-lo.

- E há muito tempo que o senhor a conhece? Perguntei-lhe.

- Há talvez um mês, replicou ele. Gosto de visitar os enfermos; e tendo sabido do estado da sra. Izabel, fui vê-la. Sua conversação me tem sido de muito proveito, e dou graças a Deus por ter-me dado ocasião de conhecê-la. [...]

Dei ordem para que me selassem o cavalo, e que foi feito em pouco tempo. O soldado tinha-se apeado à porta, e como também voltava para casa do vaqueiro fui em sua companhia. No caminho ele me narrou alguns fatos notáveis que manifestavam as excelentes disposições da filha do vaqueiro, segundo tinham chegado ao seu conhecimento nas conversações que recentemente tinha tido com ela.

- É um diamante bem lapidado [...] que em breve brilhará no céu com mais esplendor do que brilham os da terra.

Continuamos conversando até perto da casa do vaqueiro. Ao aproximar-nos a ela guardamos o mais profundo silêncio. Os pensamentos de morte, de eternidade e de salvação, despertados pela vista da casa em que se achava uma cristã moribunda, enchiam minha mente, e creio que também a de meu companheiro.

A não ser o cão que guardava a porta da casa, nenhum vivente aparecia ali. Tudo estava em silêncio, e o mesmo cão nem latiu ao aproximarmo-nos. Parecia saber do estado em que estava aquela família, e não querer molestá-la com seus latidos. Adiantou-se até a cancela do jardim e volveu os olhos para a casa, como se soubesse que nela havia tristeza. Parecia dizer-nos: «Entrai com cuidado, pois que o coração de meu amo está cheio de pesar.»

Serena solenidade parecia rodear todo aquele lugar. O vento soprando por entre os ramos das nogueiras, que estavam perto da porta, se afigurava à minha imaginação como lamentações de dor. Abri a porta com cuidado, e nada interrompia a quietação daquela casa, onde eu nada via. [...] chegamos à escada.

- Chegaram, disse uma voz que conheci ser a do vaqueiro; chegaram!

Encontrei o vaqueiro na escada. Trocamos um silencioso aperto de mão.

Ao entrar no quarto de cima, para onde ele me conduziu, vi Isabel que sem dar fé do que se passava, era sustida pela mãe e pelo irmão. Perto de uma janela a cunhada de Isabel chorava [...] e duas pessoas mais aí estavam prontas para qualquer emergência.

Sentei-me ao lado da cama. A mãe de Isabel não podia chorar, mas cada vez que fitava o pálido rosto de sua filha, contemplava-me em seguida, e deixava escapar um suspiro que, vinha penetrar-me o coração. As lágrimas que corriam pelas faces do irmão exprimiam toda a ternura e afeto que devotava à que se aproximava da morte. O velho vaqueiro encostado a um pilar perto desse leito para onde todos os olhares se convergiam, tinha, imóvel, e por seu turno os olhos pregados na filha, que tão cedo deveria deixar este mundo. Isabel, com os olhos cerrados, não tinha percebido que eu estava ali. Em seu rosto pálido, macilento e abatido, transparecia essa calma triunfante, que é a manifestação daquela divina paz que excede todo o entendimento.

O soldado, depois de uma breve e silenciosa contemplação, passou-me sua Bíblia, indicando com o dedo a primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, capítulo 15, versos 55-57. Li em alta voz a seguinte passagem que ele designava:

- "Onde está, oh morte, a tua vitória? Onde está, oh morte, o teu aguilhão? Ora o aguilhão da morte é o pecado: e a força do pecado é a lei. Porém graças a Deus, que nos deu a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo."

Ao ouvir estas palavras, Isabel abriu os olhos; um raio de luz divina pareceu brilhar em seu semblante, e disse:

- A vitória, a vitória! Por nosso Senhor Jesus Cristo.

Tornou a cerrar as pálpebras, sem dar mais atenção às pessoas que a cercavam. [...]

Os olhos do vaqueiro levantados para o céu nesse momento, diziam que ele pronunciava o amém em seu coração, embora o não pudesse exprimir com os lábios.

Izabel fez um esforço para respirar e eu lhe perguntei:

- Não sente, minha amiga, que Deus a protege?

- Sim, senhor, replicou ela, Deus me trata com bondade.

- Não são suas promessas, agora, mais preciosas que nunca?

- Nelas fundamento toda a minha esperança.

- Sente muitas dores no corpo?

- Tão poucas, respondeu ela, que apenas penso nisso.

- Quão bom é o Senhor!

- E quão desprezível sou!

- A senhora vai vê-lo conforme ele é.

- Penso.... espero.... creio que sim.

Voltei-me então para seus pais e não pude deixar de exclamar:

- Pobres anciãos! Vossa filha vai deixar-vos, mas é para ir ter com o seu Deus.

- Oh, exclamou o vaqueiro, se também pudéssemos ir com ela! - muito sensível nos é separar-nos.

- Espero, que pela graça, e pela fé, não tardarão a reunir-se para nunca mais separar-se.

- Sim, senhor, este pensamento é nosso apoio seguro, e nós confiamos na bondade de Deus.

- Oh! sim, Ele é extremamente bom, disse Isabel, louvemos seu santo nome até na mesma hora da morte.

Voltou-se então para mim e disse com voz fraca:

- Agradeço-lhe muito a caridade com que me tem tratado.... Tenho mais um favor a pedir-lhe.... O senhor assistiu ao enterro de minha irmã. . . . far-me-á o mesmo favor?

- Satisfarei seus desejos, se Deus o permitir.

- Obrigada, senhor, obrigada .... Mas tenho ainda a pedir-lhe outro favor.... Lembre-se de meus pais, depois da minha morte. Já são velhos, mas creio que a boa obra já está principiada em suas almas....

Oh! venha sempre vê-los.... Não posso falar muito, mas desejo falar por amor deles.... Lembre-se sempre deles.

Os anciãos não puderam conter os soluços por mais tempo, e sufocados em pranto se ajoelharam ao pé da cama; todos os que estavam no quarto fizeram o mesmo. Então a moribunda esforçou-se por sentar-se, e com voz que indicava sua crescente debilidade, disse:

- O Senhor me trata com bondade, e me deu a paz... Ele é o Salvador.... o Libertador... o Deus das misericórdias!

Teve em seguida uma ligeira convulsão finda a qual continuou:

- Bendito Jesus.... Precioso Salvador.... Seu sangue purifica de todo o pecado.... Seu nome é Admirável.... Graças a Deus.... Ele nos dá a vitória.... Eu, até eu, estou salva.... Oh graça, misericórdia e admiração! Senhor recebe o meu espírito.... Meus queridos pais.... meu amado irmão.... meus bons amigos.... vou deixar-vos mas sou feliz.... feliz.... sim ....

Faltaram-lhe as forças, e não falou mais: balbuciava apenas algumas palavras ininteligíveis.

Por espaço de dez horas, esteve em tranquilo êxtase e por fim adormeceu nos braços do Senhor, que tão misericordioso se havia mostrado para com ela.

Retirei-me uma hora depois de lhe ter faltado a voz. Ao despedir-me apertei-lhe a mão dizendo:

- Jesus Cristo é a ressurreição e a vida. Senti que ela apertava também minha mão, mas não abriu os olhos, nem pôde falar.

- Adeus, disse eu comigo, adeus querida amiga, até que a madrugada de um dia eterno renove o nosso conhecimento pessoal. És uma centelha arrebatada do braseiro deste mundo para te tornares em luzente estrela no firmamento da glória. Vi tua luz e boas obras, e por isso glorificarei a nosso Pai, que está nos céus. Vi em teu exemplo o que é ser um pecador livremente salvo pela graça de Deus. Aprendi de ti, como em um espelho animado, quem é o que principia, continua e conclui a obra da fé e do amor. Jesus é tudo: ele será glorificado. Ele ganhou a coroa, e é o único que merece cingi-la. Quem ousará tentar roubar-lhe a glória? Ele salva, e salva completamente. Adeus, querida irmã no Senhor. Tua carne e teu coração podem faltar-te, mas Deus é a fortaleza de tua alma, e será teu dote para sempre.

No dia seguinte mandaram-me chamar para assistir ao enterro de Isabel, que tinha falecido algumas horas depois de me ter despedido. Muitos pensamentos gratos, apesar de melancólicos, estavam ligados ao complemento desta cena. Repassei pela mente as muitas e importantes conversações que tínhamos entretido. Meditei sobre o carácter interessante e proveitoso da amizade cristã, quer praticada em um palácio, ou em uma choupana, e senti muita gratidão para com Deus pensando no tempo em que gozei do privilégio de relacionar-me com esta virtuosa jovem. Senti ternas saudades lembrando-me que já não podia ouvir as grandes verdades do Cristianismo pronunciadas por quem assim tinha bebido até fartar-se das águas da vida. Meu pesar foi no entanto reprimido pelo pensamento consolador de que já ela estava gozando do descanso eterno. E quereria eu trazê-la de novo a este vale de lágrimas?

Enquanto eu caminhava, e faziam-se os solenes preparativos para o enterro na casa em que estava o cadáver de Isabel, ouvi o primeiro som do campanário que convidava aos vizinhos para o seu funeral. Era um som solene, que parecia proclamar ao mesmo tempo a dita dos que morrem no Senhor, e a necessidade que há para os viventes de meditar sobre estas coisas e imprimi-las em seu coração.

Ao entrar na casa do vaqueiro encontrei muitos amigos cristãos de vários pontos da vizinhança que se tinham reunido para prestar o último tributo de respeito e afeto à memória de sua filha. Pediram-me que entrasse no quarto para onde os parentes e alguns amigos da família tinham ido, afim de ver pela última vez a defunta Isabel.

Se há momento em que Cristo e a salvação, a morte, o juízo, o céu e o inferno, se tornem mais do que nunca objetos da mais séria e importante meditação, é aquele em que nos achamos ao lado de um ataúde que encerra os restos mortais de um crente.

As feições de Isabel estavam pouco alteradas; seus velhos pais estavam sentados à cabeceira, e seu irmão aos pés do ataúde, manifestando o mais vivo pesar. A debilidade da velhice dava ao sofrimento dos pais um tal aspecto, que despertava a maior compaixão.

Uma mulher decentemente trajada, que estava encarregada das coisas necessárias ao funeral, adiantou-se para mim e disse-me:

- Esta cena, senhor, deve antes ser de alegria, que de pesar, ao menos quanto à defunta Isabel. Não julga assim?

- Segundo o que tenho visto e ouvido dizer dela, repliquei, estou certo de que embora seu corpo permaneça aqui, sua alma está no paraíso com o Salvador. Aqui ela o amava, e lá ela goza dos prazeres dos que estão à sua direita para sempre.

- Ai de mim! Que será de mim? Isabel morreu. Morreu minha filha. Oh minha filha, jamais tornarei a ver-te! Que Deus se compadeça de mim! Exclamou a pobre mãe.

- Essa última súplica, boa mulher, lhe disse eu, vos levará a reunir-vos à vossa filha. É uma petição que tem atraído à glória milhares de pessoas. Levou já vossa filha no céu, e espero que também vos há de levar. Deus de nenhum modo rejeita aos que se chegam a Ele.

- Minha querida esposa, disse o vaqueiro, depois do longo silêncio que tinha guardado, deixemos que nossa filha repouse no Senhor, e confiemos nEle. O Senhor a deu, o Senhor a tirou; bendito seja o nome do Senhor! Vamos envelhecendo, e é provável que não tenhamos de fazer ainda uma grande jornada... julgo que estamos chegando ao fim do caminho, e então... E sua voz foi entrecortada pelos soluços.

O soldado de que tenho falado passou-me então a Bíblia, pedindo-me que lesse um capítulo, antes de nos encaminharmos para a igreja.

Abri o livro sagrado, e comecei a ler o capítulo 14 de Jó; e enquanto lia reinava o maior silêncio neste aposento, onde os minutos que passavam pareciam preciosos. Finda a leitura fiz algumas observações sobre o capítulo que tinha lido e procurei aplicá-las às circunstâncias que se tinham dado com a nossa falecida irmã. [...]

Várias pessoas que se achavam presentes começaram também a tomar parte na conversação, durante a qual se fez menção da vida e experiência da filha do vaqueiro, de uma maneira muito interessante; cada um tinha alguma coisa a dizer sobre seu excelente gênio. Uma moça de cerca de 16 anos, cujo caráter tinha sido travesso e trivial, até aquele dia, pareceu prestar muita atenção ao que se dizia; e mais tarde tive razões para crer que a graça divina principiou então a incliná-la a escolher a melhor parte que nunca houvesse de lhe ser tirada. Que contraste não apresentava esta cena, comparando-a com o modo triste, formal e muitas vezes indecente com que muitos se comportam nas reuniões fúnebres!

[...] Cheguei-me ao caixão em que estava o cadáver de Isabel, para vê-la pela última vez; o seu semblante era expressivo, e mostrava que ela tinha expirado com um sorriso nos lábios, revelando-nos a tranquilidade de sua alma ao partir deste mundo.

Segundo o costume do lugar, o ataúde estava enfeitado de flores; flores que murchavam, mas que me faziam lembrar aquele paraíso onde as flores nunca morrem e onde já descansava a alma imortal de Isabel.

Recordei-me então de suas últimas palavras, e ocorreu-me o feliz pensamento de que a morte tinha realmente sido tragada na vitória. Ao retirar-me disse comigo mesmo: «Que vossa memória e minha alma fiquem em paz, minha ditosa irmã, até que nos encontremos em um mundo melhor.» Dali a pouco formou-se o cortejo fúnebre ao qual muitas pessoas, pela gravidade de seu caráter, tornavam ainda mais interessante.

Depois de ter caminhado a distância de cem metros, fui agradável e repentinamente interrompido em minhas meditações pelo canto de um salmo entoado pelos amigos que seguiam a família. Nada podia ser mais doce e solene: o som da música produzia um efeito mui particular; o caminho por onde passávamos era formoso e pitoresco, e cortado ao pé de uma colina, a qual de tempo a tempo ressoava como um eco das vozes dos cantores, e parecia ternamente replicar as lamentações dos aflitos.

[...] Chegamos finalmente [...]. Todos assistiram ao ofício fúnebre com a mais profunda atenção. Depositou-se na sepultura o cadáver de nossa querida amiga, com a maior esperança de uma gloriosa ressurreição de entre os mortos. Deste modo correu-se por algum tempo o véu da separação. Deixou este mundo, mas será vista no último dia à destra do Redentor; [...]

Querido leitor, sejais rico ou pobre, aparecereis também ali, à destra do Redentor? Estamos nós revestidos de humildade para o serviço do Senhor? Por ventura temos nós conhecido nossa própria fraqueza, e recorrido à plenitude de um Salvador para obter graça e fortaleza? Vivemos nós nele, sobre ele, com ele e por ele? É Ele porventura o nosso tudo? Somos nós como «o filho pródigo» «perdidos e achados», «mortos e tornados de novo à vida?»

Sois pobre? Querido leitor; a filha do vaqueiro também era pobre e filha de um pobre. Neste ponto pareceis-vos com ela, como ela se parecia com Cristo. Sois rico na fé? Está vosso coração disposto a aceitar as riquezas do céu? No caso de o não estar, torna a ler esta história, e pedi tão preciosa fé. Se, pela graça de Deus, já amais e servis ao Redentor, que salvou a filha do vaqueiro - que a graça, a paz e a misericórdia sejam convosco. Tendes uma rica herança, cumpri fielmente os vossos deveres, confiando no Senhor. Já tendes visto quão doce e feliz é a morte do justo. Abraçai a mesma fé em Jesus Cristo, a mesma santidade de vida, que brilhava na filha do vaqueiro, e participareis, como ela, da inexprimível felicidade, que está preparada para os constantes e fiéis observadores da lei do Senhor.

Tendes-me acompanhado à sepultura de uma crente.

 

"Tu porém vais até o tempo predefinido: e descansarás, e ficarás na tua sorte até o fim dos dias." Daniel 12:13.

 

Nota: A mãe de Isabel faleceu 6 meses depois de sua filha; e tenho boas razões para crer que Deus foi misericordioso para com ela. É de esperar, que todo o filho convertido trabalhe e ore, como Isabel fez, pela conversão de seus pais. O pai sobreviveu à sua esposa, e enobreceu sua velhice com aquela circunspecta conversação que convém ao Evangelho. Não sei se ainda vive; mas é provável que antes desta data, (1812), a filha e seus pais já se tenham reunido na terra das puras e santas delícias, onde reinam os santos imortais.

 

FIM.

Atualizado e adaptado a partir de: "A Filha do Vaqueiro" (Dairyman's Daughter). Legh Richmond (1772-1827). Fonte: Jornal Imprensa Evangélica. Vol. V, nº 8-14. 1869.